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Vozes da perplexidade


A primeira das recordações é da viúva de um bombeiro, que morreu quinze dias após o desastre. “Ainda andávamos nas ruas de mãos dadas, mesmo quando entrávamos em lojas. Sempre juntos. Eu dizia a ele ‘eu te amo’. Mas ainda não sabia o quanto o amava”, conta Liudmila Ignatienko, que tinha então 23 anos e escondeu a gravidez de seis meses para acompanhar o marido no hospital. A radiação arrebenta a pele, faz cair cabelos e pelos, causa hemorragias, destrói ossos e órgãos internos, que são expelidos pela boca. À horrenda descrição se contrapõe a paixão de Liudmila, que sobreviveu porque o feto absorveu a maior parte da radiação a que ela se expôs. A menina morreu quatro horas após o nascimento. Algum tempo depois, Liudmila teve outro filho, que adoece a cada duas semanas. Moram  num conjunto habitacional reservado a outras vítimas de Tchernóbil. “Muitos vão morrendo. Morrem de repente. Estão andando e caem mortos. (...) As pessoas não querem ouvir falar da morte. Dos horrores... Mas eu falei do amor... De como eu amei”.

A comoção está impregnada em todos os testemunhos, incluindo o de Svetlana, que apresenta a perplexidade diante de um acidente com civis, fora de zona de guerra, geralmente relacionada “a tudo o que conhecemos sobre o horror e o medo”. Ao longo de nove anos, a jornalista ouviu essas pessoas e editou seus depoimentos. O comentário sobre cada trecho está no título dos capítulos – “Monólogo sobre o fato de que o homem só se esmera na maldade, mas é singelo e aberto às palavras simples de amor” -, explicativos como as introduções de romances europeus de outras épocas. O toque de absurdo se cristaliza com a capitalização da tragédia  pelas autoridades turísticas de Kiev, que promovem passeios a Tchernóbil, onde hoje apenas javalis e lobos caminham pelas ruas abandonadas.  Segundo os organizadores, a emissão radioativa na área é inferior a uma sessão de Raio X, após um dia de visita, que se encerra com um piquenique.

Em seu discurso na Academia Sueca, Svetlana lembrou o quanto os sobreviventes falavam em amor, mais do que nas dificuldades que enfrentam até hoje. Várias descrições mostram o estado de arrebatamento comum a quem está diante da catástrofe. Intercalo a leitura de Svetlana com os 15 contos escolhidos de Katherine Mansfield (Record, R$  39,90), uma seleção de Flora Pinheiro com nova e cuidadosa tradução de Monica Maia – que teve a ousadia de trocar o título consagrado no Brasil de “Bliss”, aqui conhecido por “Felicidade”, pelo mais correto “Êxtase”. A inquietude dos personagens da neozelandesa Mansfield, que morreu aos 34 anos, deixando uma consistente obra de quase 100 contos, se assemelha a muito do que é experimentado pelos entrevistados por Svetlana Aleksiévitch. Nas criações de Mansfield estão a descoberta da dor, das diferenças, das mudanças marcantes que alteram a compreensão da existência. Encontrar essas almas atormentadas no mundo é jornalismo. Fazer de suas histórias uma reflexão sobre a condição humana é o mais puro exercício da arte, que supera o simples viver.