Sonhar, criar, evoluir...
Vive-se para dormir, alimentar-se, pagar contas, rir um pouco, acarinhar os entes amados, receber deles algum afeto, acordar, escovar os dentes, um café e sair à rua para tudo recomeçar igualzinho a ontem. Correr risco é inevitável. Mais do isto, vital. Ainda mais para o músico. Músico que relaxa cai. Músico que negaceia decai. Ousar é preciso. Arriscar, também. Não há fórmulas mágicas. Não existem regras a serem seguidas. Só há dúvidas atrozes; temidas dúvidas. Mas ao músico cabe a música. Dela, ele tira a força que haverá de impulsioná-lo rumo àquela noite escura em que parece se transformar a busca por novos caminhos.E tantas estradas estão aí para serem desbravadas por quem faz da música ofício. Pois quando assim se dispõe a fazer, invariavelmente a coisa ferve e dá em trabalho prazeroso. A música vive hoje o momento das vozes femininas. A sensação que se tem é que a cada semana surge outra moça que canta tão bem quanto aquela que ouvimos na semana anterior. As cantoras, marinheiras de primeira viagem ou comandantes já habituadas às agruras e aos segredos do mar, têm se mostrado corajosas e desprendidas. Valem-se de todo o seu arsenal de talento e buscam ampliá-lo por meio da busca do lugar incomum, da trilha ainda por ser aberta. Munidas de seu atilamento feminino, caem na vida, movidas a música. E cantam suas agonias e seus temores; demonstram suas certezas e fortalezas. São mulheres músicas, donas de vozes que as marcam e as destacam.Tudo isso eu digo a propósito do CD Marianna Leporace - Canta Baden Powell (Mills Records). Dona de uma voz doce e delicada, Marianna sabe que vive hoje no Brasil das cantoras e está "disputando" espaço e vez com elas, que também têm vozes ricamente belas. Arriscam-se, umas e outras; e Marianna espelha este ousar.Intimista, o CD foi preparado para o mercado japonês. Convite que felizmente foi ampliado para que o trabalho fosse lançado também aqui no Brasil. Marianna Leporace fez uma ótima seleção da obra de Baden Powell: três parcerias dele com Paulo César Pinheiro, uma com Lula Freire e dez com Vinícius de Moraes. Músicas como "Samba da Benção" (Baden e Vinícius), gravada numa levada de boa bossa, com direito ao belo som do piano de Philippe Baden Powell, ele que também escreveu o arranjo, se juntam a outras não tão conhecidas, como é o caso de "Cai Dentro" (Baden e Paulinho Pinheiro), a faixa cheia de malícia e suingue que abre o CD."Lapinha" (Baden e Vinícius) tem arranjo feito por Marcel Powell. Nele, o destaque é o seu violão (a pegada e a voz são como as de seu pai, meu Deus!), que se apóia na percussão de Eduardo Szajnbrum. E ainda por cima tem a voz de Mariana. Parece pouco, não? Mas, aqui, menos é mais."Refém da Solidão", obra prima de Baden e Paulo César Pinheiro, começa com o som tão lamentoso quanto belíssimo tirado da flauta de David Ganc. O arranjo de Alain Pierre arrebata toda a tristeza amargurada dos versos do poeta, habilmente musicados pelo talento de Baden Powell. Neste samba, cuja extensão oscila desde notas que vão do muito grave ao agudo intenso, Marianna expõe o talento de intérprete sensível, mas, ao mesmo tempo, realça o pouco grave de que dispõe. Porém, se os graves não são o que de melhor ela tem, seus agudos se revelam fáceis e agradáveis aos ouvidos. Cantar Baden Powell é sonho sonhado por muitos, mas fazê-lo com a criatividade merecida pelo mestre pode levar a uma cilada musical das boas. Evidentemente, não é o caso de Marianna Leporace - Canta Baden Powell, trabalho amadurecido de uma cantora que com ele realizou seu mais belo sonho.Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4 e autor de O Gogó de Aquiles, ed. A Girafa. Seus textos são publicados semanalmente no Acontece na no Diário do Comércio (ACSP), Meio Norte (Teresina), A Gazeta (Cuiabá), Jornal da Cidade (Poços de Caldas) e Brazilian Voice (EUA). No rádio, sempre às segundas-feiras, das 15h às 16h, "O Gogo de Aquiles" vai muito bem, obrigado. Você poderá escutá-lo (no Rio de Janeiro) sintonizando diretamente na Rádio Roquete Pinto, ou (fora do Rio) na internet: www.fm94.rj.gov.br .
