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ESCOLAS DE SAMBA: POESIA E CONTRADIÇÕES

Foto: Mangueira 2016 - Carro Amigos de Bethânia.


O carnaval carioca está e estará sempre em mutação. Nem poderia mesmo ser diferente, porque movido por um combustível de altíssima potência, o povo desta cidade. O carioca reinventou há poucos anos os folguedos de rua, transformando o Rio do silencio, e apenas voltado para as escolas de samba, em um alarido. Ou melhor, na explosão dos quase mil blocos pelas ruas e avenidas da cidade inteira.


Portanto, nós, que amamos o Rio, sabemos rodar a manivela do tempo, dos sentidos, do sorver a vida. Mas também sabemos protestar, dizer não. Prova disso – de ir ao encontro das aspirações da cidade e do país - as escolas de samba testemunham desde sempre.


Eu acompanho os desfiles com assiduidade quase monástica a partir da apoteótica Chica da Silva do Salgueiro, em 1963. Já vi de tudo: de adesões subservientes à ditadura, até a rabugice de enredos patrocinados, quase sempre mais ou menos envergonhados.


Também registrei no coração alguns gritos históricos de protesto nas Escolas. Evoco aqui alguns enredos da Caprichosos de Pilares (anos 70 - 80) . Ou a beleza e magia do Império Serrano, de Silas e Mano Décio, com o hoje mítico Heróis da Liberdade “esta brisa que a juventude afaga/ esta chama que o ódio não apaga”, recado à ditadura em altíssimo nível poético. A tal ponto, que foi objeto de crônica antológica de Carlos Drummond de Andrade publicada pelo Correio da Manhã. Página de significado literário comovedor, de importância capital para a autoestima do Império Serrano. Recordo-me de que Drummond levou meu amigo, o autor Mano Décio da Viola, as lágrimas em almoço que lhe ofereci ao lado do coautor Silas, com a finalidade específica de celebrar a crônica consagratória daquele carnaval.


Creio que este samba enredo terá sido o mais eloquente dentre todos os registrados no sambódromo Darcy Ribeiro. Aliás, por falar nisso, você sabia que a Passarela do Samba porta o nome da grande figura que foi o sociólogo, acadêmico e depois senador Darcy Ribeiro?
Acho um dever propor daqui que o nome legal do Sambódromo Darcy Ribeiro seja repetido com ênfase. Ao menos pelos locutores oficiais que anunciam os desfiles na Passarela.


Historicamente, em 2018, quase a metade das Escolas aderiu à indignação popular. As duas primeiras colocadas puseram literalmente a boca no trombone, epa, nos tamborins. O Tuiuti – escola do meu coração desde o Cravo de Ouro (enredo de 2007) – foi tão contundente no protesto quanto a Beija Flor. Esta empregou o recurso de teatralizar as alas. Aliás, caminho um tanto perigoso porque o samba no pé, fundamento de essência da dança, fica quase anulado.
Quero refletir sobre mais dois aspectos. A divisão entre samba e teatro, entre escolas de protestos e escolas de não protestos. Ou seja, uma possível dicotomia a sinalizar outra guinada, na criatividade da arte popular. Neste desfile de 2020, anotem, tanto a teatralização de alas, quanto os enredos de protestos não deverão ser prioritários.


Vale observar, e eu faço com orgulho e alívio, que a safra deste ano dos sambas de enredo vem sendo considerada das melhores das duas últimas décadas. Na opinião de quem sabe, a maioria dos críticos.


Nem vou apontar preferências pessoais, mas não há como deixar de citar o samba da Mangueira, cujo enredo virou polêmica instantânea quando divulgado. Como todos sabem, a Estação Primeira teve a audácia de transformar personagens bíblicos, imortalizados em igrejas, em personagens vivos, postos em desfile carnavalesco. A figura de Jesus Cristo, venerado ao longo de dois mil anos por bilhões e bilhões de pessoas, virou personagem da Escola de Cartola.


A polêmica, que ameaçava pegar fogo, arrefeceu quando o carnavalesco Leandro Vieira assegurou que Jesus, sim, seria louvado em samba. Mas com respeito sacramental. “Um Jesus dos pobres, o profeta da paz, o ente supremo do amor”.


É o que todos queremos ver daqui a pouco no sambódromo Darcy Ribeiro.


Ricardo Cravo Albin