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Duas estrelas


Toda autobiografia é uma ficção, segundo alguns especialistas em psicologia e literatura.   Ficção nem sempre intencional: existe uma tendência em apagar memórias incômodas ou pouco relevantes para a narrativa da própria vida. Duas mulheres notáveis, com apenas dois anos de diferença etária, mas transitando em universos totalmente diferentes, abordam suas vivências de maneiras igualmente distintas. A autobiografia da popstar Tina Turner, também assinada pelos  jornalistas Deborah Davis e Dominik Wichmann, segue a fórmula consagrada   de descrever um momento de impacto para abrir o baú de memórias, contadas cronologicamente. A escritora Nélida Piñon optou por uma forma mais ousada em termos de narrativa, porém absolutamente cômoda para quem vive da literatura: pequenos textos montam um mosaico que pretendem revelar um pouco de sua personalidade para o leitor.

Tina Turner jamais foge das memórias dolorosas que vêm desde a infância, quando se sentia negligenciada pela mãe, que chegou a abandonar a família, sem explicar às filhas seus motivos. O ressentimento pelo pouco carinho da mãe talvez explique a submissão aos maus tratos físicos e psicológicos submetidos a Tina pelo guitarrista Ike Turner, durante vinte anos de casamento. Ela revive a já conhecida trajetória de superação depois de fugir de Ike e iniciar uma carreira solo que lhe deram doze prêmios Grammy e mais de 200 milhões de discos vendidos. Além de deliciosas indiscrições sobre características de algumas das maiores estrelas do rock mundial – não, ela nunca teve um caso com David Bowie, a quem chama de “cavalheiro”, e, sim, seu amigo Mick Jagger é extremamente competitivo -, Tina detalhe, em Minha história de amor (Best-Seller, R$ 42,90), o romance com o marido Erwin Bach, um executivo da indústria fonográfica, 16 anos mais jovem, com quem vive desde os anos 1990.

Sem tragédias pessoais a desfiar, mas com premiações tão importantes quanto as de uma superstar – entre elas,  um Jabuti, o Casa de las Américas e o Príncipe de Astúrias -, Nélida Piñon prefere conta sua história com a discrição que convém aos que vivem distante dos palcos. O estilo de abordagem das duas autoras se imprime nas imagens das capas: uma traz um a fotografia em preto e branco de Tina Turner, o sorriso cúmplice ao encontrar seu público. Já a capa de Uma furtiva lágrima (Record, R$ 49,90) reproduz  um fractal, com  a superposição de camadas esverdeadas, entremeadas de tons alaranjados, semelhantes ao mosaico biográfico composto pelos trechos criados por Nélida.   

Os textos fragmentados por Nélida compõem um retrato de sua alma criadora, mais reservada e pronta ao reconhecimento íntimo com o leitor, aquele que não participa do êxtase coletivo ao ver seu ídolo em cena. Como a própria escritora explica, falar em primeira pessoa requer audácia e “termina sendo uma experiência que vai além da estética, da arte narrativa”.  Das memórias vêm experiências folheadas  como um álbum de retratos, contando a migração dos avós da Galícia para o Brasil, o apreço por figuras históricas, pela música, pelos amigos literatos. Casos divertidos surgem lá e cá, como a reprimenda do escritor Afrânio Coutinho, no dia em que foi eleita para a Academia Brasileira de Letras. Uma de suas eleitoras, a amiga Lígia Fagundes Telles, vinha de ônibus de São Paulo, devendo chegar ao Rio às 14h para uma votação que abaria às 16h.

“- Vocês duas são umas irresponsáveis. Basta que fure um pneu na estrada para perdermos esta eleição”, esbravejou Afrânio. Cinco anos depois, Nélida tornou-se a primeira mulher a presidir a instituição.