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As paixões e seus incômodos


A relação do leitor com o escritor é intensa e sujeita a desentendimentos e incompreensões, como se ambos cultivassem uma convivência íntima. Muitos dos apaixonados pela italiana Elena Ferrante podem experimentar leve decepção ao ler Um amor incômodo (Intrínseca, R$ 34,90). A morte da mãe é o ensejo para recordações da infância da filha, que cresce com a família despedaçada pela violência do pai machista e a revelação de um envolvimento adúltero da mulher. Nos livros de Ferrante, os homens napolitanos de baixa escolaridade são violentíssimos e acreditam que as mulheres lhes pertencem.  Em todas as suas histórias, esses personagens se repetem, na figura de um pai ou de um irmão, beirando a misoginia. E as mulheres, fortíssimas, se entregam a relações extraconjugais com amantes de quinta categoria, quase sempre casados. As paixões se sobrepõem à maturidade como se não houvesse saída fora entregar-se a relacionamentos acompanhados por desespero e fadados a pequenas tragédias. O universo de Elena Ferrante é o dos arrebatamentos ilusórios e da infelicidade.  

E por que vale a pena ler Elena Ferrante? Ora, porque ela é como Garcia Marquez ou Vargas Llosa: mesmo os livros “menores” desses autores se tornam uma leitura obrigatória, mesmo que movida, apenas, por curiosidade. Elena Ferrante sabe enredar o leitor em suas reflexões sobre essas protagonistas perdidamente apaixonadas, sejam mulheres que suplantaram as barreiras sociais e culturais de suas origens, ou as que se mantiveram nos mesmos padrões que conheceram desde o nascimento. E Elena Ferrante carrega ainda o mistério do pseudônimo. Por mais que sua identidade tenha sido descoberta – ou não -, ela segue a tradição de escritoras como Jane Austen, que assinava suas histórias como “uma senhora”. Há quem diga que Elena pode ser um homem, porém há uma autenticidade nos traços de suas personagens experimentados tão somente pelas mulheres, mesmo nos tempos  em que gêneros se tornam até uma escolha.  

Até quem jamais teve filhos ou se casou seguindo padrões tradicionais, como Simone de Beauvoir, consegue reproduzir em sua ficção essas sutilezas da feminilidade: ressentimentos guardados no fundo da alma, a ambiguidade dos sentimentos em relação a outras mulheres, a benevolência e compreensão quanto ao comportamento dos homens. As personagens de seus contos e romances são mulheres que se devotam às famílias, dentro do papel a elas destinado na época. Na vida real, no entanto, Simone escolheu um caminho anticonvencional para uma filha da burguesia francesa nascida no início do século XX.  Sua boa educação lhe permitiu rodar o mundo em companhia de Jean Paul Sartre, numa relação aberta que desafia os arranjos amorosos até hoje.  Em Memórias de uma moça bem-comportada (Nova Fronteira,  R$ 39,90), que ganhou uma belíssima nova edição, ela inicia seus relatos autobiográficos – tão ou mais interessantes que sua ficção. Há quem considere Simone uma ególatra cuja trajetória não foi fielmente relatada em sua obra.  Lembranças têm pouco a ver com registros históricos. As de Simone de Beauvoir trazem o encantamento das descobertas acumuladas a cada momento de uma vida intensa, descritas com o frescor das percepções imediatas, que a imortalizaram não apenas como uma das mães do feminismo moderno.