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A imperfeição no feminino


A meu lado, repousa uma coletânea de crônicas da italiana Natalia Gisnzurg , As pequenas virtudes(Cosac Naify, R$ 32,90), tratando de seu cotidiano durante a Segunda Guerra Mundial, das amizades, da família, do primeiro marido, militante socialista morto na prisão pelos fascistas. 

O primeiro livro é puro humor, mas até convoca à reflexão sobre as exigências da sociedade ocidental em relação às mulheres, que precisam ser lindas, inteligentes, charmosas, sensuais, administradoras da vida alheia, do lar e, claro, boas profissionais. E magras. Muito magras. As duas irmãs francesas não fazem tantas menções aos homens. Nem precisam. A imposição social pode ser masculina, mas ele é cumprida e exercida pelas mulheres. E elas se referem a um tipo idealizado de mulheres – que sempre viajam para destinos exóticos, que jamais atrasam o pagamento de contas e guardam notas fiscais e recibos, que só se alimentam de salada verde, que sabem cozinhar como um chef (pra quê, se só comem salada?), têm maridos e filhos bem-sucedidos. O único detalhe é que essas mulheres só existem nos anúncios de margarina e na literatura, como mostrou Ira Levin em Mulheres Perfeitas (Bertrand, R$ 35).  No romance, lançado nos anos 1970, um família se muda para o subúrbio de Stepford, onde todos vivem em eterno estado de felicidade. A última adaptação para o cinema foi estrelada por  Nicole Kidman, Glenn Close e Christopher Walken. 

Passar da leitura das irmãs francesas para Natalia Ginzburg prolonga o prazer alcançado pelo humor. Depois de gargalhar com bobagens, mergulhar nas observações de quem teve de desempenhar de todas as tarefas determinadas às mulheres, paralelamente à carreira literária, é estender a reflexão sobre o ser feminino no mundo contemporâneo. As recordações de temporadas felizes no interior, durante a guerra, na companhia do marido e dos filhos, são tão melancólicas quanto os encontros em tempos de paz. Ao lado das lembranças autobiográficas estão pequenos ensaios sobre a vida e o trabalho. A melancolia une esses textos elegantes e objetivos, mais profundos e vigorosos do que os produzidos por gurus motivacionais da atualidade. Neles, as figuras femininas surgem salpicando as narrativas, a todo momento, como Crocetta, a jovem empregada que contava pavorosas histórias de terror aos filhos da escritora. A mãe da autora, à frente da família “em que todos têm sapatos sólidos e saudáveis”, que se indigna ao ver os calçados destroçados da filha empobrecida no pós-guerra. As velhas senhoras londrinas, que, à noite, usam maquiagem rosada ou amarela, transformando-se “de quietos pardais em faisões exuberantes”. 

A essas mulheres comuns ainda não se exigia a exibição do exercício intenso da luxúria, como pede o colunista da revista semanal à presidente brasileira. A ele e a outros misóginos enrustidos, é recomendável conhecer melhor a alma feminina através do que algumas mulheres escrevem. Porque não é só de ostentação na Internet que caminha a humanidade.