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A arte de enganar o público


O choque de culturas permeia todo o segundo volume da trilogia, que acaba de ser lançado no Brasil. Filho de pai sírio e mãe francesa, criado numa localidade síria, Sattouf aprende a enfrentar a violência cotidiana, seja na escola, onde alunos são punidos fisicamente pelos professores, ou nas ruas, onde convive com meninos agressivos, que, segundo o autor contou em entrevistas, “eram mais maduros do que as crianças francesas, mimadas e ingênuas”.  


A doutrinação política a que Sattouf era submetido na escola não chegou a surtir efeito. Hoje, ele vive na França, onde observa, temeroso, o crescimento da rejeição aos refugiados árabes, entre eles seus próprios parentes, que tiveram de deixar a Síria.  O título do livro se refere a uma expressão cunhada pelo pai de Sattouf, um professor que acreditava na educação como antídoto contra o obscurantismo, aliando o respeito às tradições ao progresso.


O obscurantismo aparece também, mas no Brasil, em A ditadura militar e a longa noite dos generais – 1970-1985 (Record, R$ 47,90), do jornalista Carlos Chaga, que mescla a objetividade jornalística da observação de fatos às suas recordações pessoais, entre elas a da censura às publicações em que trabalhava na época. Diversos episódios mostram a dificuldade de noticiar o período mais intenso de perseguições aos opositores do regime e a gradual abertura política, que culmina com a eleição indireta de Tancredo Neves. Pouco antes, o governo norte-americano já começara a atuar nos bastidores para sufocar qualquer manifestação socialista no continente. Uma das vitórias em campo foi a bem-sucedida operação militar que capturou e matou o argentino Ernesto Che Guevara na Bolívia, em 1967. Os jornalistas americanos Kevin Maurer e Mitch Weiss entrevistaram vários integrantes do pelotão que encontrou Guevara, em Caçando Che (Record, R$ 39). Buscando não tomar partido de qualquer causa, eles tratam da formação do grupo, contando sobre o treinamento e as investigações que levaram ao esconderijo de Che. Uma das recomendações aos executores foi que não atirassem na região acima do pescoço, já que seria divulgado que o guerrilhero teria morrido por “ferimentos em combate”.


Enganar o público muitas vezes é fruto de um burilado trabalho de autor, como mostra Sir Arthur Conan Doyle em A volta de Sherlock Holmes (Zahar, R$ 29,90). Os treze contos foram publicados, pela primeira vez, entre 1903 e 1904, quando o escritor atendeu ao clamor dos leitores e retomou as aventuras do detetive, que havia “morrido” ao cair nas cataratas de Reinchenbach, na Suíça, levando para o fundo das águas seu arqui-inimigo, o professor Moriarty, em 1891. Em Londres, muitas pessoas passaram a usar uma braçadeira negra, em sinal de luto pela morte do personagem, de quem Conan Doyle pretendia se desvincular literariamente. A casa vazia é o primeiro dos contos. Ambientada em 1894,  a narrativa demonstra como funciona a mente de um autor de folhetins, que sempre tem uma solução nova para requentar e recontar uma história. Elementar como forjar a própria morte, explica Sherlock a seu amigo Watson.